Este blog foi criado em 2006 para compartilhar reflexões sobre Literatura, Novas Tecnologias e Educação. Desde 2010, tenho este Blog como um portfólio digital onde constam reflexões e pesquisas sobre o pré-projeto de Doutorado. Em 2012, ingressei no Doutorado em Informática na Educação (UFRGS) e desde então, esse espaço tem sido utilizado para divulgação da pesquisa da tese e sobre reflexões relacionadas a inovações na educação com o uso das tecnologias.
quarta-feira, dezembro 26, 2012
Reflexões sobre a Situação Indígena no Brasil à luz dos postulados de Zygmunt Bauman (Texto)
Cristiane
Koehler
Programa
de Pós-Graduação em Informática na Educação (PGIE/UFRGS)
cristiane.koehler@gmail.com
Resumo. Este artigo foi
escrito a partir das reflexões
realizadas com a leitura das obras do sociólogo Zygmunt Bauman: “Globalização e
as Consequências Humanas”, “Legisladores e Intérpretes” e “Em Busca da Política”,
propostas na disciplina “Modernidade Líquida II”, do Programa de Pós-Graduação
em Informática na Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Estas
leituras foram realizadas individualmente e as discussões foram feitas em grupo
presencialmente na sala de aula e em momentos de trocas online na rede social
Facebook. O objetivo deste artigo é apresentar as principais ideias discutidas
sobre as reflexões do autor referente à busca de um novo olhar sobre a política
na sociedade contemporânea e relacioná-lo com a situação atual dos índios no
Parque Indígena do Xingu, localizado no estado brasileiro do Mato Grosso do
Sul.
Palavras-chave: Modernidade Líquida, Parque Indígena do Xingu,
Globalização.
1. Introdução
O presente artigo tem como
objetivo estabelecer interlocuções entre as obras de Zygmunt Bauman abordadas na disciplina de doutorado “Modernidade
Líquida II”, do PPGIE – UFRGS, no período letivo de 2012-2, ministrada pela
professora Marie Jane Soares Carvalho, com a colaboração da pós-doutoranda
Nádie Christina Machado-Spence. A ideia principal deste texto é apresentar
algumas reflexões sobre a situação do povo indígena brasileiro,
contextualizando esta situação desde a época do descobrimento do Brasil até os
dias atuais e a sua relação com a globalização, tendo como embasamento teórico as
obras de Zygmunt Bauman e o pensamento do geógrafo brasileiro Milton Santos.
Para iniciar as reflexões, além
das leituras, o filme Xingu[1] foi
escolhido para que pudéssemos ter subsídios concretos no momento de fazer a
relação das obras com a situação real e atual do índio brasileiro.
O filme foi
escrito e dirigido por Cao Hamburger e estrelado pelos atores João Miguel, Felipe Camargo e Caio Blat. Xingu conta a trajetória dos irmãos Villas-Bôas, no ano de 1943. Os três jovens irmãos estudaram em
colégios tradicionais, tinham emprego em São Paulo (SP) e deixaram tudo para viver
a grande aventura. Orlando com 27 anos, Cláudio com 25 e Leonardo com 23, alistam-se na Expedição Roncador-Xingu[2] junto com
outros sertanejos oriundos da região do atual Mato Grosso (MS). A expedição foi uma parte do processo de interiorizacão do Brasil,
a Marcha para o Oeste, criada em 1943 pelo governo de Getúlio Vargas.
A história começa com a travessia
do Rio das Mortes, também conhecido como Rio Manso,
que banha o estado do Mato Grosso (MT) e
encontra-se na Bacia Tocantins-Araguaia,
com extensão total de 580 kilômetros. Os irmãos Villas-Bôas tornam-se líderes
do grupo para trabalhar na abertura de estradas e construção de pistas de pouso.
Esta liderança mudou o caráter da expedição, que tinha tudo para ser violenta,
mas se tornou uma expedição baseada no ideal do Marechal Cândido Rondon: "Morrer se preciso, matar
nunca".
Orlando, irmão mais velho, é o principal
articulador entre o povo indígena e o Governo Federal. Cláudio, é o grande idealista e o mais
consciente das contradições da expedição e do que realmente estava acontecendo.
Leonardo, é o caçula, jovem que se envolve com uma índia, que engravida e
depois vão embora para São Paulo (SP). A
viagem conta com pequenas batalhas entre os índios ainda selvagens e os
desbravadores, assim como foi na época do descobrimento do Brasil; picadas e
campos de pouso foram abertos, rios foram percorridos, vilas e cidades foram
desbravadas, além das crises de malária e infestações
do vírus da gripe que, em uma oportunidade, alastrou-se pela aldeia deixando-os
doentes e muitos mortos.
Em 14 de abril de 1961, sob o Decreto Nr. 50.455, o então Presidente
recém-empossado, Jânio Quadros
autoriza a criação do Parque Nacional do Xingu, uma espécie de parque ecológico e reserva indígena que, na época, era o maior
do mundo. O parque foi criado, com mais de dois milhões de quilômetros
quadrados, com o objetivo de preservar a fauna e a flora do Brasil e de abrigar
os povos indígenas que habitavam a região por várias gerações. Os irmãos
Vilas-Boas viveram mais de trinta anos no Brasil Central e colaboraram com a preservação da natureza local. Nestes anos, catalogaram
cerca de cinco mil indígenas e catorze tribos, e também, criaram algumas cidades como postos de
base na região, como Nova Xavantina (MS).
O filme apresenta
a luta pela criação do parque e pela salvação de tribos
inteiras que transformaram os irmãos Villas-Bôas em heróis brasileiros.
Para a
escrita deste texto, a escolha do filme foi feita baseada em três motivos: (1)
conta a história da criação do parque indígena do Xingu com a demarcação do
território; (2) tem relação com o momento atual onde a notícia é o anúncio do
suicídio coletivo indígena no estado do Mato Grosso do Sul (MS); e (3) porque as
leituras em questão estão relacionadas a estes fatos atuais.
A estrutura deste texto apresenta, na seção 2, uma contextualização
da situação indígena; na seção 3, uma reflexão sobre os conceitos de “intelectuais”,
“não-intelectuais”, “legisladores”, “intérpretes”, “pensadores” e
“não-pensadores”, discutidos na obra de Zygmunt
Bauman (2010); na seção 4, a situação indígena sob uma visão política e a visão
dos povos trazendo um contexto histórico; na seção 5, as considerações finais;
e em seguida, as referências bibliográficas.
2. Contextualização
Analisando o filme, compreende-se
o quanto os interesses políticos, de pessoas aqui caracterizadas, como sendo os
“intelectuais”, interferem na vida das pessoas “não-intelectuais”, definidos
assim na obra “Legisladores e Intérpretes” (Bauman, 2010). Nesta obra, o autor
apresenta os “intelectuais” como sendo pessoas responsáveis por interferir no
processo político por meio da influência exercida sobre as pessoas e moldar as
ações dos seus líderes políticos que eram descendentes dos “philosophes” ou também chamados de
“homens de conhecimento”, mostrando que o poder/conhecimento é um atributo
visível da Modernidade. Os “intelectuais” são chamados de “legisladores” e os
“não-intelectuais” são chamados de “intérpretes”.
Observando a situação atual dos
povos indígenas brasileiros, de um lado, os “intelectuais” são os políticos e
fazendeiros que estão defendendo a demarcação de terras avaliadas como sendo de
sua propriedade, e do outro lado, os “não intelectuais” são os povos indígenas
que representam os nativos da região, que defendem as terras onde nasceram e
onde os seus ancestrais viveram há muitos anos atrás.
A briga pela posse e demarcação
de terras indígenas não é fruto da Modernidade nem da Pós-Modernidade, esta
situação existe desde que o Brasil foi descoberto e que os homens brancos
tentam, de uma forma ou de outra, extrair riquezas e tomar posse de terras que
já possuem o índio como dono.
Com o objetivo de ilustrar os
conceitos comentados aqui neste texto, a Figura 1 (em Anexo A) mostra o mapa
conceitual sobre o “Capítulo 01 – Paul
Radin, ou uma etiologia dos intelectuais”, da obra “Legisladores e
Intérpretes” (Bauman, 2010).
O mapa conceitual representado na Figura 1 mostra dois
conceitos centrais deste texto, que são: os “intelectuais” e os
“não-intelectuais”. O antropólogo
norte-americano Paul Radin (Bauman, 2010, p. 25) afirma que existem dois tipos
gerais de temperamento entre os povos primitivos: o sacerdote-pensador e o leigo.
O sacerdote-pensador é reconhecido como os “intelectuais”, e o leigo é visto
como os “não intelectuais”.
É nesse contexto que o filme nos aponta a relação
entre a obra de Bauman (2010) e a realidade atual do índio brasileiro que
continua, desde o descobrimento do Brasil até os dias atuais, lutando pela
propriedade das suas terras junto ao Governo Federal e a Justiça brasileira. No
filme fica bem definido quem são os “intelectuais”: Governo Federal e
fazendeiros, e que os índios são os “não-intelectuais”.
Durante o mês de Outubro de 2012, houve uma
mobilização massiva nas redes sociais, em defesa da comunidade Guarani-Kaiowá. A comunidade reinvindica
a posse de terras no município de Iguatemi (MS). Atualmente, os Guaranis se
utilizam diplomaticamente da força da palavra – e mais ainda da palavra escrita
e seu poderoso efeito de mobilização. Tal como nas situações de conflito do
período colonial, quando as antigas lideranças cobravam das autoridades e
conclamavam os demais indígenas a unirem-se nas reinvindicações. Hoje, os Guaranis-Kaiowás
surpreendem com o conhecimento e a habilidade com que utilizam os recursos das
redes sociais para chamar a atenção para seus posicionamentos. Entretanto, o
noticiário da televisão brasileira, demorou para divulgar as notícias sobre a
situação atual desta comunidade[3].
No Brasil, a situação dos Guaranis-Kaiowás sofre
profundas mudanças depois da Guerra do Paraguai (1864-1870) quando inicia a
ocupação sistemática do território Guarani por diversas frentes de exploração
econômica. Os indígenas passam a ser vistos como reserva de mão de obra e
assistem à transformação da ocupação tradicional das terras e à derrubada da
mata. No final do século 19 e início do século 20, instalaram-se as primeiras
fazendas de criação de gado[4].
Entre 1915 e 1930, o Serviço de Proteção ao Índio
demarcou oito locais (Amambaí, Dourados, Caarapó, Sassoró, Porto Lindo,
Jacarae´y, Pirajuí e Taquapery), com o total de 18.124 hectares para usufruto
da população indígena. Ainda hoje, cerca de 80% da população Guarani-Kaiowá
segue vivendo nas áreas de Dourados, Amambaí e Caarapó, onde existe a
concentração de serviços de saúde, educação e assistência[5].
Em 1943, quando o presidente Getúlio Vargas implanta a
política da Marcha para o Oste, com o objetivo de possibilitar o acesso à terra
para milhares de colonos, acentua-se a instalação de empreendimentos e o
desmatamento. Assim, ao observarmos o mapa da distribuição territorial do
estado do Mato Grosso do Sul ficam evidentes as disputas históricas entre
indígenas e colonos/fazendeiros, revelam-se as causas dos confrontos atuais e
anuncia-se a continuidade das disputas no futuro.
A seguir, um fragmento da carta da comunidade Guarani-Kaiowá
enviada para o Governo Federal e o Ministério da Justiça. Esta carta foi
publicada na rede social Facebook em 20 de outubro de 2012, em resposta à
decisão da Justiça Federal de Navaraí (MS), emitida no dia 29 de setembro de
2012, a qual decretava a expulsão definitiva dos 170 povos indígenas Guarani-Kaiowá
que acamparam provisoriamente na área de meio hectare da Fazenda Cambará, em
Iguatemi (MS):
“Nós (50 homens, 50 mulheres e 70 crianças) das
comunidades guarani-kaiowás originárias de tekoha Pyelito Kue/Mbrakay, viemos
através desta carta apresentar nossa situação histórica e decisão definitiva.
(...) Queremos deixar evidente ao Governo e Justiça Federal que, por fim, já
perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso
território antigo, não acreditamos mais na Justiça brasileira.”
No dia 08 de outubro de 2012, uma carta assinada pelos
líderes da aldeia comunica a recusa em deixar a região. Os índios afirmam no
documento que vão “lutar até morrer”. A
frase foi interpretada como sugestão de suicídio coletivo e gerou intensa
reação nas redes sociais, durante todo o mês de Outubro. Na semana de 03 de
novembro de 2012, o Tribunal Regional Federal da Terceira Região suspendeu a reintegração de posse da fazenda
determinada por liminar favorável aos fazendeiros.
Nesta carta e na posição dos líderes indígenas, pode-se
observar a consciência avassaladora dos indígenas sobre a sua própria
realidade. Neste contexto atual, o objetivo deste artigo é mostrar uma reflexão
sobre a situação indígena brasileira e a relação desta situação com as obras de
Zygmunt Bauman e Milton Santos.
3. Os Intelectuais e os Não-Intelectuais na
Sociedade Contemporânea
Segundo o Dicionário Silveira Bueno, a palavra “intelectual”
é um adjetivo que se refere ao intelecto, que tem inteligência culta: as
classes intelectuais; que tem dotes de inteligência; literário; científico; que
diz respeito ao entendimento; pessoa dada a estudos literários ou científicos.
E a palavra “leigo”, também é um adjetivo, mas significa alguém estranho a um
assunto.
A definição acima, é uma entre tantas definições que o
termo “intelectual” admite. Pode-se
observar que as definições do conceito de “intelectual” são várias e
diversificadas. Isto porque quem tenta definir o conceito do
que é ser um “intelectual”, o faz baseado na sua realidade, e não deixa de ser
uma auto-definição.
Quando Paul Radin (Bauman, 2010), menciona a
existência de pessoas caracterizadas como sacerdotes-pensadores
e outras como leigos, sendo o
segundo fundamentalmente identificado com a “ação” e o primeiro com a
“reflexão”; um interessado na “análise dos fenômenos religiosos”, e o outro em
seus “efeitos”[6],
o autor está definindo que há na sociedade dois tipos de personalidades
humanas, sendo uma a que se preocupa com a reflexão, o pensar sobre, a análise
dos acontecimentos, e a outra com o fazer, com a operação, com as ações
puramente práticas sem considerar a reflexão sobre este fazer.
No começo, há uma oposição entre a grande maioria das
pessoas comuns – preocupadas com seus assuntos cotidianos de sobrevivência, a
“ação”, no sentido da reprodução rotineira de suas condições de existência – e
um pequeno grupo dos que só podem refletir
sobre a “ação”. É importante ressaltar que o grupo dos “intelectuais”, também
chamados neste texto de “pensadores”, não existe sem o grupo dos “leigos”. O
homem primitivo tem medo dos fatos que desconhece, das incertezas da luta pela
vida[7].
A incerteza sempre foi uma fonte suprema de medo. O comportamento aleatório de
fatores cruciais de sucesso ou fracasso pela luta pela vida, a
imprevisibilidade obstinada do resultado, a falta de controle sobre tantas
incógnitas na equação da vida, isso sempre gerou desconforto espiritual e fez
os sofredores ansiarem pela segurança que somente o controle prático – ou a
consciência intelectual – das probabilidades pode dar. Este anseio tem sido o
fio da meada primordial com que mágicos, sacerdotes e especialistas
científicos, profetas ou profissionais da política estão às voltas (Bauman,
2010, p. 25-26).
Na verdade, isto quer dizer que os “leigos” precisam
dos “pensadores” para sobreviver porque acreditam que os “pensadores” podem
trazer a solução para os problemas do cotidiano, seus males e dúvidas da vida.
Então, quanto mais os “leigos” continuarem na condição
de “leigos”, mais os “pensadores” dominam o poder, o conhecimento sobre as
coisas da vida e, consequentemente, dominam a vida e tudo o que cerca o grupo
dos “leigos”. Tem-se dessa forma, de um lado, o grupo dominante – os “pensadores”
e de outro lado, o grupo dos dominados – os “leigos”. E por isso, novas
incertezas geradoras de medo são introduzidas no mundo da vida do “leigo” para
que este continue sempre assim, sendo dominado pelo grupo dos dominantes.
A diferença entre os “pensadores” e os “leigos”, entre
estar interessado em ideias e estar interessado em seus efeitos, leva a muitas
consequências, tanto políticas, culturais quanto sociais. Esta diferença produz
uma assimetria aguda no desdobramento do poder social. Isto é, não só promove
uma nítida polarização de status, influência e acesso ao excedente social
produzido como também (e talvez mais importante) baseia uma relação de dependência
na oposição de temperamento. Os “leigos” tornam-se dependentes dos “pensadores”,
a pessoa comum não pode conduzir os seus assuntos cotidianos sem pedir e
receber assistência dos “pensadores”. Na sociedade, os “leigos” passam a serem
vistos como seres carentes, incompletos, e até imperfeitos. Desta forma, os “leigos”
são vistos como pessoas que precisam da presença constante e a intervenção dos “pensadores”
para sobreviver. O conhecido psiquiatra norte-americano Kurt Goldstein, em
(Bauman, 2010, p. 32) afirma que:
“Só
se podem distinguir, em todas as sociedades primitivas, dois tipos de pessoas,
os que vivem estritamente de acordo com as regras da sociedade, que Radin chama
de não pensadores, e os que pensam, os pensadores”.
O número de pessoas no grupo dos “pensadores” pode ser
pequeno, mas eles desempenham um grande papel: são pessoas que formulam os conceitos e os
organizam em sistemas, os quais são adotados – em geral sem crítica – pelos “não
pensadores”[8].
Um aspecto importante a considerar sobre os “pensadores”
é que a intensidade ou o alvo de sua
dominação depende do quanto as incertezas ou privações causadas pela ausência
de conhecimento dos “leigos”, são presentes na vida destes. Isto é, quanto mais
as pessoas tiverem ausência de conhecimento e saber sobre as coisas, mais os “pensadores”
terão domínio de causa e poder para dominação.
E é nesse contexto, que este artigo traz para
reflexão, a situação atual do índio brasileiro, raça humana que está sendo
dizimada pelo homem branco, desde o descobrimento do Brasil até os dias atuais.
Os anos e décadas passam, e os mais fortes continuam a explorar os mais fracos.
4. A Situação
Indígena: um pouco de história
Historiadores[9] afirmam que antes da chegada de Cristóvão Colombo, em
12 de outubro de 1492, havia na América, aproximadamente 100 milhões de índios
em todo o continente. Em território brasileiro, havia 5 milhões de nativos que viviam
divididos em tribos de acordo com o tronco linguístico ao qual pertenciam: tupis guaranis na região do litoral, tapuias na região do planalto central,
e caraíbas na Amazônia.
Quando os europeus chegaram à terra que viria ser o
Brasil, encontraram uma população ameríndia bastante homogênea em termos
culturais e linguísticos, distribuída ao longo da costa e na bacia dos rios
Paraná-Paraguai. Pode-se distinguir dois grandes blocos sub-divididos em: tupis-guaranis e os tapuias (Fausto, 2001, p. 15).
A chegada dos portugueses representou para os índios
uma verdadeira catástrofe. Isso
mesmo, uma catástrofe. Os brancos eram ao mesmo tempo, temidos, respeitados e
odiados, como homens dotados de poderes especiais, assim como xamãs, que
andavam pela terra, de aldeia em aldeia, curando, profetizando e falando de uma
terra em abundância. Por outro lado, por não existir uma nação indígena e sim
grupos dispersos muitas vezes em conflito, foi possível aos portugueses
encontrar aliados indígenas na luta contra os grupos que lhes resistiam.
É importante salientar que o povo indígena resistiu e
não se deixou escravizar assim como o povo negro. Uma forma excepcional de
resistência consistiu no isolamento,
alcançado através de contínuos deslocamentos para regiões cada vez mais pobres.
Em limites muito estreitos, esse recurso permitiu a preservação de uma herança
biológica, social e cultural. No entanto, ao mesmos tempo em que preservam a
sua cultura, os índios vivem como refugiados em suas próprias terras.
Os índios que se submeteram ou foram submetidos
sofreram violência cultural, as epidemias e mortes. Do contato com o europeu
resultou numa população mestiça que mostra até hoje sua presença silenciosa na
formação da sociedade brasileira.
Observa-se, que a palavra catástrofe foi muito bem colocada pelo autor Fausto (2001), para
designar o destino da população ameríndia. Milhões de índios viviam no
território brasileiro na época da conquista das terras, e hoje, calcula-se que apenas
400 mil índios ocupam as terras brasileiras, principalmente, em reservas
indígenas demarcadas e protegidas pelo Governo Federal. São cerca de duzentas etnias
indígenas e cento e setenta idiomas, porém a grande maioria desse povo já não
vive mais como antes da chegada dos portugueses. O contato com o homem branco
fez com que muitas tribos perdessem a sua identidade cultural. O primeiro
contato entre os índios com homens brancos foi no dia 22 de abril de 1500,
quando o Brasil foi oficialmente descoberto por Pedro Álvares Cabral.
As duas culturas eram muito diferentes e pertenciam a
mundos completamente distintos. O que sabemos sobre os índios que viviam
naquela época deve-se à carta de Pero Vaz de Caminha, que era escrivão da
expedição de Pedro Álvares Cabral, e também devido aos documentos deixados
pelos padres jesuítas.
Os portugueses achavam-se superiores aos indígenas, e
portanto, pensavam que precisavam dominá-los e colocá-los aos seus serviços. O
europeu considerava a cultura indígena como sendo uma cultura inferior, e com esta
convicção, acreditavam que a sua função era convertê-los ao cristianismo, e fazê-los
seguirem a cultura europeia. Foi assim que os índios foram perdendo a sua
identidade.
Os indígenas que habitavam o Brasil, nos anos entre
1492 e 1500, viviam da caça, pesca e da agricultura de milho, amendoim, feijão,
abóbora, batata-doce, e principalmente da mandioca. Esta agricultura era praticada
de forma bem rudimentar. Os índios domesticavam alguns animais e as tribos possuíam uma relação baseada em
regras sociais, políticas e religiosas, onde o contato com outras tribos acontecia
em momentos de guerras, casamentos, cerimônias de enterro, e também, no momento
de estabelecer alianças contra um inimigo comum. Os índios faziam objetos
utilizando a matéria-prima extraída da natureza, e esta extração era apenas o
necessário para a sua sobrevivência.
Entre os indígenas, não há classes sociais como há
entre os povos brancos. Nas tribos indígenas, todos têm os mesmos direitos e
recebem o mesmo tratamento. A terra, por exemplo, pertence a todos, e quando um
índio caça, costuma dividir com os habitantes da sua tribo. Apenas os
instrumentos de trabalho, como machados, arcos e flechas são de propriedade
individual. O trabalho na tribo é realizado por todos, porém possui uma divisão
por sexo e idade. Os homens ficam com o trabalho mais pesado, como abrir
caminhos em matas, a caça e a pesca, e as mulheres e crianças fazem o trabalho
mais leve, como a comida, o artesanato, o cuidado com os animais, e as mulheres
o cuidado com as crianças.
4.1 A Situação Indígena: do povo Guarani-Kaiowá
Hoje, passado mais de trinta dias após as
manifestações nas redes sociais, a situação dos índios Guarani-Kaiowás ainda é noticia
na imprensa, como mostrado a seguir:
No
dia 04/12/2012, um manifesto que pede demarcação e homologação das terras
indígenas, com vinte mil assinaturas, é entregue aos três poderes da República.
O manifesto subscreve outro manifesto intitulado Em Defesa da Causa
Indígena, que desde junho deste ano circula o mundo. Os idealizadores
da campanha, a Associação dos Juízes pela Democracia
(AJD)
e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entregaram, ao lado de
lideranças indígenas de todo país, o documento e as assinaturas para
representantes dos três poderes nacionais – Executivo, Legislativo e
Judiciário.
Segundo a desembargadora Kenarik Boujikian,
representando a AJD,
“Essa é uma amostra de que o povo brasileiro quer que a Constituição seja
cumprida. Em 1988 ficou definido que o governo federal teria cinco anos para
demarcar todas as terras indígenas, o que não ocorreu em 1993, e passados quase
20 anos depois disso, apenas 1/3 das terras estão regularizadas. (...) O
Judiciário tem uma dívida com a Constituição e os povos indígenas. Os processos
envolvendo a regularização das áreas não podem ficar parados durante anos,
décadas”.
No dia 06/12/2012, encerrou o prazo dado pelo Supremo Tribunal Federal
(STF) para que as famílias de não índios desocupem por livre, espontânea vontade
e pacificamente a terra indígena Marãiwatsédé, localizada entre os municípios
de São Félix do Araguaia e Alto da Boa Vista, norte do Mato Grosso. As famílias
de não índios foram notificadas entre os dias 07 e 17/11/2012, e desde então,
estão protestando na BR-158. As terras pertencem
aos índios, foi homologada por decreto presidencial em 1998 e reconhecida por
sucessivas decisões judiciais, o que, conforme o governo, “legitima o direito
constitucional do povo indígena de voltar em seu local originário, com a
garantia do usufruto e da posse permanente de sua terra”. A decisão judicial da
semana, com julgamento de mérito, atende a uma ação movida pelo Ministério
Público Federal em 1995[10].
Segundo Ana Spoladore[11], a comunidade Guarani-Kaiowá não
enfrentava mais o risco de um despejo das suas terras, devido ao sucesso do
recurso interposto pelo Ministério Público Federal, no Mato Grosso do Sul
(MPF/MS) e pela Advocacia-Geral da União (AGU), na figura do Procurador Federal
Frederico Aluisio C. Soares[12]. Entretanto, a comunidade indígena
ainda está submetida a uma preocupante realidade. Precisam esconder-se em
lugares distantes, com acesso somente pelo rio, para não sofrer mais violência
dos homens brancos. A água do rio foi contaminada e mulheres índias foram
estupradas. Dessa maneira, pode-se dizer que os índios estão vivendo como
refugiados dentro das suas próprias terras.
A advogada de um grupo de fazendeiros argumentou:
“Todo o problema da violência está na ocupação das terras por parte dos indígenas,
se não houvesse as ocupações, não haveria violência”.
O problema é que as terras precisam ser demarcadas pelo
Governo brasileiro, como previsto na Constituição Federal de 1988, para que
fique bem definido até onde vão as terras indígenas e onde começam as terras do
homem branco. Nesta situação, a responsabilidade da demarcação das terras é,
pura e simplesmente, do Estado brasileiro.
“Do rio que tudo arrasta, diz-se
que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem”.
Finalmente, para concluir este texto, a última notícia
que apresenta-se na imprensa no dia 11/12/2012, publicada no Jornal O Estadão[14], é que a desocupação de terra
indígena gerou mais um conflito no Mato Grosso do Sul (MT): “Hoje, no primeiro dia
da reintegração de posse da reserva Marãiwatsédé teve confronto entre policiais
e produtores rurais”. O confronto ocorreu por causa da retirada dos ocupantes
não índios da reserva, localizada a 1.064 km de Cuiabá-MT, reconhecida pela
Justiça brasileira, como de propriedade dos índios.
5.
Considerações Finais
É impressionante como o homem branco conseguiu, em nome
do progresso, quase que exterminar uma etnia, uma ração humana, que são os povos
indígenas. Na minha opinião, se os processos públicos continuarem nesse mesmo
caminho, infelizmente, a raça humana indígena será extinta do território
brasileiro.
Observa-se que, desde a época do descobrimento do Brasil,
no período colonial, a violência foi marca forte no relacionamento do Estado
Brasileiro com os povos indígenas. Desde a criação Serviço de Proteção aos
Índios (SPI) em 1910 e as migrações forçadas promovidas contra os indígenas no
Mato Grosso do Sul (MS), a partir da década de 1930, com o objetivo de incentivar
a colonização do Centro-Oeste brasileiro, como mostrado no filme Xingu, onde
muitos índios foram obrigados a migrarem de um lugar para outro com a promessa
de terem as suas próprias terras. Os irmãos Villas-Boas foram protagonistas
desta migração, levando centenas de índios para o chamado Parque Nacional do
Xingu.
A violência marcou a venda ilegal das terras tradicionais
dos Guarani-Kaiowá para homens brancos. E, percebe-se que aqui está o maior
erro cometido pelo Estado brasileiro. Por que vender as terras dos índios para
os homens brancos ? Quais os interesses do Estado brasileiro na venda destas
terras ? Os homens brancos podem pagar Imposto Territorial Rural (ITR) ? Os
índios não pagam impostos ? A violência continua quando Estado brasileiro,
continua com a demora na demarcação das terras. Enquanto o Estado brasileiro
for omisso mediante estas questões, infelizmente, as barbáries no interior do
Mato Grosso (MT) e de outros estados, continuarão a assombrar os índios e seus
descendentes. Os Guarani-Kaiowás sempre foram e ainda são invisíveis para o
Estado Brasileiro. São eles, as verdadeiras vítimas da “impiedosa marcha do
progresso”, citada por Victor Hugo[15].
Nesse momento, após tantas informações sobre esta
situação, retomo o questionamento feito por Bauman (2010): “Qual o papel dos “intelectuais”
no desenvolvimento cultural de seu tempo ?” Esta pergunta intriga muitas
pessoas e Bauman (2000) afirma que precisamos de uma nova política, de uma nova
política para o nosso tempo, o aqui e agora:
“A arte da política, se for
democrática, é a arte de desmontar os limites à liberdade dos cidadãos; mas
também, a arte da autolimitação: a de libertar os indivíduos para capacitá-los
a traçar, individual e coletivamente, seus próprios limites individuais e
coletivos. Esta segunda característica foi praticamente perdida. Todos os
limites estão fora dos limites” Bauman (2000, p. 12).
Na Modernidade, o “intelectual” tinha a tarefa de formar
os homens “leigos”. A sua função de “pensador” era legitimada pelo conhecimento
superior sobre as coisas do mundo e decisiva para o aperfeiçoamento da ordem
social. Na Pós-Modernidade, o “intelectual” é caracterizado pelo trabalho de “intérprete”,
aquele que procura facilitar a comunicação entre indivíduos, atuando como uma
espécie de “negociador” em tempos de globalização e de afirmação de
diversidades (Bauman, 2010).
Baseado na ideia de Bauman (2000), não estaríamos nós
brasileiros, precisando de um novos “intérpretes” para os novos tempos em que estamos
vivendo ? Um intérprete que consiga compreender a pós-modernidade e pensar
sobre antigos problemas ?
Quando fala-se em antigos problemas, aqui cito todos os
problemas gerados também, pela Globalização, tão debatida pelo geógrafo
brasileiro (in memorian) Milton
Santos. Pode-se observar que “a marcha para o oeste”, “a corrida para a
globalização” como sendo ingredientes importantes para o progresso das nações,
mas então o que este progresso trouxe para os povos, senão, fome, desemprego,
desalento, falta de saúde, educação, entre tantas outras mazelas ?
Não seria, sempre em nome do progresso, em nome de desbravar
terras virgens, como o que foi feito por Cristóvão Colombo; não seria como a colonização
portuguesa no Brasil, no período colonial; não seria a marcha para o Oeste, na
era Getúlio Vargas; não seria a tal Globalização nos dias de hoje, tudo fruto
de interesses financeiros e políticos de poucos “pensadores” em detrimento dos
interesses de muitos “leigos” ?
Pois, a na Globalização prega-se a privatização e
extinção dos serviços estatais; fala-se em privatização da água potável em
Kotiabamba, na Bolívia, sendo que a água é um patrimônio da humanidade; tem-se
idiomas que desaparecem com a chegada dos brancos e os nativos são extintos.
Em 2001, cidadãos argentinos da classe média, promovem o
movimento que ficou conhecido como Panelaço porque sofreram a dolarização da
economia, e com isso tornaram-se os novos pobres do país de um dia para outro.
No Brasil, a privatização da Vale
do Rio Doce, a ilusão da moeda forte e consumo fácil e a construção da
hidrelétrica de Belo Monte[16] que promete gerar energia para
sessenta milhões de pessoas, mas por outro lado, está localizada no coração da Floresta
Amazônica. Dentre os problemas apontados pelos ambientalistas[17] está a inundação de uma grande
área na Amazônia equivalente a um terço da cidade de São Paulo (SP) e não tem
como não causar problemas ambientais.
A nova divisão internacional do trabalho, distribuindo migalhas
mundo afora, leva o desemprego aos Estados Unidos (EUA), sendo que o desemprego
é uma condição para a globalização e a pobreza é tratada com naturalidade.
Estamos vivendo uma situação onde temos um mundo que se
divide em dois grupos: “os que não comem e os que não dormem com receio da
revolta dos que não comem” [18].
Por isso, é muito importante pararmos e pensarmos, se é esse mesmo o mundo em que queremos viver e deixar para os nossos filhos, netos, e tataranetos.
Para a finalização deste texto, foram consultados diversos
textos, de vários autores relacionados nas referências bibliográficas, nos
links das notas de rodapé e na página do grupo da disciplina, na rede social
Facebook: https://www.facebook.com/groups/408055995893689/
Referências
Bauman, Z. (1999) Globalização: As
consequências humanas. Tradução Macus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar.
_________. (2010) Legisladores e
Intérpretes. Tradução Renato Aguiar. – Rio de Janeiro: Zahar.
_________. (2000) Em Busca da
Política. Tradução Marcus Penchel. – Rio de Janeiro: Zahar.
_________. (2011a) Fronteiras do
Pensamento. Entrevista com o
filósofo polonês Zygmunt Bauman para o Fronteiras do Pensamento,
apresentada na ocasião do encontro com o pensador francês Edgar Morin, em 08/08/2011,
Porto Alegre-RS, com acesso em 18 jul 2012.
Fausto, Boris. (2001) História
Concisa do Brasil. São Paulo: EDUSP. Imprensa Oficial do Estado. 2001.
Santos, Milton. (2011) Programa: É
tudo verdade. Canal Brasil. Entrevista com o geógrofo e livre pensador
brasileiro Milton Santos, apresentada pelo canal de televisão Canal Brasil,
disponível no endereço eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=K6EIIQNsoJU, com acesso em 28 nov 2012.
__________. (2011) Documentário do
cineasta brasileiro Sílvio Tendler. Globalização Milton Santos – O Mundo Global
visto do Lado de Cá. Entrevista com o geógrofo e livre pensador brasileiro
Milton Santos, apresentada pelo canal de televisão Canal Brasil, disponível no
endereço eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=-UUB5DW_mnM, com acesso em 28 nov 2012.
[1] Sinopse e dados técnicos disponíveis em http://www.xinguofilme.com.br/, com acesso em 01 dez 2012.
[2] Jornal da Tarde - Nosso Tempo, Volume I, página 333.
Editora Klick (1995) - "Os irmãos Villas Boas redescobrem o país"
[3]
Jornal Zero Hora. (2012) Caderno Cultura. Texto escrito
por Maria Cristina dos Santos, professora do Programa de Pós-Graduação em
História da PUC-RS, com o título: “Cinco
séculos de confronto: a palavra como arco e flecha”. Pág. 03
de 03/11/2012.
[6] Paul Radin, Primitive
Religion, Its Nature and Origin, Londres, Hamilton, 1938, p.14 apud Bauman
(2010).
[9] Documentário do professor de história César
Motta (2012), disponível no endereço eletrônico: http://www.youtube.com/watch?v=S82jXhqCa54, com acesso em 06 dez 2012.
[10] Notícia disponível no endereço eletrônico: http://www.xingu-otomo.net.br/area-no-mato-grosso-sera-devolvida-hoje-a-indios-xavantes/, com acesso em 11 dez 2012.
[11] Notícia disponível no endereço eletrônico: https://www.facebook.com/notes/ana-spoladore/relato-da-viagem-%C3%A0s-comunidades-guarani-kaiow%C3%A1-por-pedro-gustavo-gomes-andrade/435786503150529, com acesso em 11
dez 2012.
[12] Justiça Federal de
Navirai-MS, Decisão em sede de Agravo de Instrumento que revoga a liminar de
reintegração de posse no processo nº 0000032-87.2012.4.03.6006.
[13] Frase disponível no endereço eletrônico: http://pensador.uol.com.br/autor/bertolt_brecht/, com acesso em 11 dez 2012.
[14]Notícia veiculada no Jornal O Estadão disponível no
endereço eletrônico: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,desocupacao-de-terra-indigena-gera-conflito-em-mato-grosso-,971963,0.htm, com acesso em 11 dez 2012.
[15] Notícia disponível no endereço eletrônico http://racismoambiental.net.br/2012/12/relato-da-viagem-as-comunidades-guarani-kaiowa/#.UL6zGAV6zvO.twitter, com acesso em 11 dez 2012.
[16] Notícia disponível no endereço http://super.abril.com.br/ecologia/quais-sao-vantagens-desvantagens-belo-monte-667389.shtml
, com acesso em 13 dez 2012.
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