quarta-feira, dezembro 26, 2012

Reflexões sobre a Situação Indígena no Brasil à luz dos postulados de Zygmunt Bauman (Figura 1)


Reflexões sobre a Situação Indígena no Brasil à luz dos postulados de Zygmunt Bauman (Texto)


Cristiane Koehler
Programa de Pós-Graduação em Informática na Educação (PGIE/UFRGS)
cristiane.koehler@gmail.com
Resumo. Este artigo foi escrito a partir das reflexões realizadas com a leitura das obras do sociólogo Zygmunt Bauman: “Globalização e as Consequências Humanas”, “Legisladores e Intérpretes” e “Em Busca da Política”, propostas na disciplina “Modernidade Líquida II”, do Programa de Pós-Graduação em Informática na Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Estas leituras foram realizadas individualmente e as discussões foram feitas em grupo presencialmente na sala de aula e em momentos de trocas online na rede social Facebook. O objetivo deste artigo é apresentar as principais ideias discutidas sobre as reflexões do autor referente à busca de um novo olhar sobre a política na sociedade contemporânea e relacioná-lo com a situação atual dos índios no Parque Indígena do Xingu, localizado no estado brasileiro do Mato Grosso do Sul.
Palavras-chave: Modernidade Líquida, Parque Indígena do Xingu, Globalização.
1. Introdução

O presente artigo tem como objetivo estabelecer interlocuções entre as obras de Zygmunt Bauman  abordadas na disciplina de doutorado “Modernidade Líquida II”, do PPGIE – UFRGS, no período letivo de 2012-2, ministrada pela professora Marie Jane Soares Carvalho, com a colaboração da pós-doutoranda Nádie Christina Machado-Spence. A ideia principal deste texto é apresentar algumas reflexões sobre a situação do povo indígena brasileiro, contextualizando esta situação desde a época do descobrimento do Brasil até os dias atuais e a sua relação com a globalização, tendo como embasamento teórico as obras de Zygmunt Bauman e o pensamento do geógrafo brasileiro Milton Santos.

Para iniciar as reflexões, além das leituras, o filme Xingu[1] foi escolhido para que pudéssemos ter subsídios concretos no momento de fazer a relação das obras com a situação real e atual do índio brasileiro.

O filme foi escrito e dirigido por Cao Hamburger e estrelado pelos atores João MiguelFelipe Camargo e Caio Blat. Xingu conta a trajetória dos irmãos Villas-Bôas, no ano de 1943. Os três jovens irmãos estudaram em colégios tradicionais, tinham emprego em São Paulo (SP) e deixaram tudo para viver a grande aventura. Orlando com 27 anos, Cláudio com 25 e Leonardo com 23, alistam-se na Expedição Roncador-Xingu[2] junto com outros sertanejos oriundos da região do atual Mato Grosso (MS). A expedição foi uma parte do processo de interiorizacão do Brasil, a Marcha para o Oeste, criada em 1943 pelo governo de Getúlio Vargas.

A história começa com a travessia do Rio das Mortes, também conhecido como Rio Manso, que banha o estado do Mato Grosso (MT) e encontra-se na Bacia Tocantins-Araguaia, com extensão total de 580 kilômetros. Os irmãos Villas-Bôas tornam-se líderes do grupo para trabalhar na abertura de estradas e construção de pistas de pouso. Esta liderança mudou o caráter da expedição, que tinha tudo para ser violenta, mas se tornou uma expedição baseada no ideal do Marechal Cândido Rondon: "Morrer se preciso, matar nunca".

Orlando, irmão mais velho, é o principal articulador entre o povo indígena e o Governo Federal. Cláudio, é o grande idealista e o mais consciente das contradições da expedição e do que realmente estava acontecendo. Leonardo, é o caçula, jovem que se envolve com uma índia, que engravida e depois vão embora para São Paulo (SP).  A viagem conta com pequenas batalhas entre os índios ainda selvagens e os desbravadores, assim como foi na época do descobrimento do Brasil; picadas e campos de pouso foram abertos, rios foram percorridos, vilas e cidades foram desbravadas, além das crises de malária e infestações do vírus da gripe que, em uma oportunidade, alastrou-se pela aldeia deixando-os doentes e muitos mortos.

Em 14 de abril de 1961, sob o Decreto Nr. 50.455, o então Presidente recém-empossado, Jânio Quadros autoriza a criação do Parque Nacional do Xingu, uma espécie de parque ecológico e reserva indígena que, na época, era o maior do mundo. O parque foi criado, com mais de dois milhões de quilômetros quadrados, com o objetivo de preservar a fauna e a flora do Brasil e de abrigar os povos indígenas que habitavam a região por várias gerações. Os irmãos Vilas-Boas viveram mais de trinta anos no Brasil Central e colaboraram com a preservação da natureza local. Nestes anos, catalogaram cerca de cinco mil indígenas e catorze tribos, e também, criaram algumas cidades como postos de base na região, como Nova Xavantina (MS).

O filme apresenta a luta pela criação do parque e pela salvação de tribos inteiras que transformaram os irmãos Villas-Bôas em heróis brasileiros.

Para a escrita deste texto, a escolha do filme foi feita baseada em três motivos: (1) conta a história da criação do parque indígena do Xingu com a demarcação do território; (2) tem relação com o momento atual onde a notícia é o anúncio do suicídio coletivo indígena no estado do Mato Grosso do Sul (MS); e (3) porque as leituras em questão estão relacionadas a estes fatos atuais.

A estrutura deste texto apresenta, na seção 2, uma contextualização da situação indígena; na seção 3, uma reflexão sobre os conceitos de “intelectuais”, “não-intelectuais”, “legisladores”, “intérpretes”, “pensadores” e “não-pensadores”,  discutidos na obra de Zygmunt Bauman (2010); na seção 4, a situação indígena sob uma visão política e a visão dos povos trazendo um contexto histórico; na seção 5, as considerações finais; e em seguida, as referências bibliográficas.
2. Contextualização

Analisando o filme, compreende-se o quanto os interesses políticos, de pessoas aqui caracterizadas, como sendo os “intelectuais”, interferem na vida das pessoas “não-intelectuais”, definidos assim na obra “Legisladores e Intérpretes” (Bauman, 2010). Nesta obra, o autor apresenta os “intelectuais” como sendo pessoas responsáveis por interferir no processo político por meio da influência exercida sobre as pessoas e moldar as ações dos seus líderes políticos que eram descendentes dos “philosophes” ou também chamados de “homens de conhecimento”, mostrando que o poder/conhecimento é um atributo visível da Modernidade. Os “intelectuais” são chamados de “legisladores” e os “não-intelectuais” são chamados de “intérpretes”.

Observando a situação atual dos povos indígenas brasileiros, de um lado, os “intelectuais” são os políticos e fazendeiros que estão defendendo a demarcação de terras avaliadas como sendo de sua propriedade, e do outro lado, os “não intelectuais” são os povos indígenas que representam os nativos da região, que defendem as terras onde nasceram e onde os seus ancestrais viveram há muitos anos atrás.

A briga pela posse e demarcação de terras indígenas não é fruto da Modernidade nem da Pós-Modernidade, esta situação existe desde que o Brasil foi descoberto e que os homens brancos tentam, de uma forma ou de outra, extrair riquezas e tomar posse de terras que já possuem o índio como dono.

Com o objetivo de ilustrar os conceitos comentados aqui neste texto, a Figura 1 (em Anexo A) mostra o mapa conceitual sobre o “Capítulo 01 – Paul Radin, ou uma etiologia dos intelectuais”, da obra “Legisladores e Intérpretes” (Bauman, 2010).

O mapa conceitual representado na Figura 1 mostra dois conceitos centrais deste texto, que são: os “intelectuais” e os “não-intelectuais”.  O antropólogo norte-americano Paul Radin (Bauman, 2010, p. 25) afirma que existem dois tipos gerais de temperamento entre os povos primitivos: o sacerdote-pensador e o leigo. O sacerdote-pensador é reconhecido como os “intelectuais”, e o leigo é visto como os “não intelectuais”.

É nesse contexto que o filme nos aponta a relação entre a obra de Bauman (2010) e a realidade atual do índio brasileiro que continua, desde o descobrimento do Brasil até os dias atuais, lutando pela propriedade das suas terras junto ao Governo Federal e a Justiça brasileira. No filme fica bem definido quem são os “intelectuais”: Governo Federal e fazendeiros, e que os índios são os “não-intelectuais”.

Durante o mês de Outubro de 2012, houve uma mobilização massiva nas redes sociais, em defesa da comunidade Guarani-Kaiowá. A comunidade reinvindica a posse de terras no município de Iguatemi (MS). Atualmente, os Guaranis se utilizam diplomaticamente da força da palavra – e mais ainda da palavra escrita e seu poderoso efeito de mobilização. Tal como nas situações de conflito do período colonial, quando as antigas lideranças cobravam das autoridades e conclamavam os demais indígenas a unirem-se nas reinvindicações. Hoje, os Guaranis-Kaiowás surpreendem com o conhecimento e a habilidade com que utilizam os recursos das redes sociais para chamar a atenção para seus posicionamentos. Entretanto, o noticiário da televisão brasileira, demorou para divulgar as notícias sobre a situação atual desta comunidade[3].

No Brasil, a situação dos Guaranis-Kaiowás sofre profundas mudanças depois da Guerra do Paraguai (1864-1870) quando inicia a ocupação sistemática do território Guarani por diversas frentes de exploração econômica. Os indígenas passam a ser vistos como reserva de mão de obra e assistem à transformação da ocupação tradicional das terras e à derrubada da mata. No final do século 19 e início do século 20, instalaram-se as primeiras fazendas de criação de gado[4].

Entre 1915 e 1930, o Serviço de Proteção ao Índio demarcou oito locais (Amambaí, Dourados, Caarapó, Sassoró, Porto Lindo, Jacarae´y, Pirajuí e Taquapery), com o total de 18.124 hectares para usufruto da população indígena. Ainda hoje, cerca de 80% da população Guarani-Kaiowá segue vivendo nas áreas de Dourados, Amambaí e Caarapó, onde existe a concentração de serviços de saúde, educação e assistência[5].

Em 1943, quando o presidente Getúlio Vargas implanta a política da Marcha para o Oste, com o objetivo de possibilitar o acesso à terra para milhares de colonos, acentua-se a instalação de empreendimentos e o desmatamento. Assim, ao observarmos o mapa da distribuição territorial do estado do Mato Grosso do Sul ficam evidentes as disputas históricas entre indígenas e colonos/fazendeiros, revelam-se as causas dos confrontos atuais e anuncia-se a continuidade das disputas no futuro.

A seguir, um fragmento da carta da comunidade Guarani-Kaiowá enviada para o Governo Federal e o Ministério da Justiça. Esta carta foi publicada na rede social Facebook em 20 de outubro de 2012, em resposta à decisão da Justiça Federal de Navaraí (MS), emitida no dia 29 de setembro de 2012, a qual decretava a expulsão definitiva dos 170 povos indígenas Guarani-Kaiowá que acamparam provisoriamente na área de meio hectare da Fazenda Cambará, em Iguatemi (MS):

“Nós (50 homens, 50 mulheres e 70 crianças) das comunidades guarani-kaiowás originárias de tekoha Pyelito Kue/Mbrakay, viemos através desta carta apresentar nossa situação histórica e decisão definitiva. (...) Queremos deixar evidente ao Governo e Justiça Federal que, por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo, não acreditamos mais na Justiça brasileira.”

No dia 08 de outubro de 2012, uma carta assinada pelos líderes da aldeia comunica a recusa em deixar a região. Os índios afirmam no documento que vão “lutar  até morrer”. A frase foi interpretada como sugestão de suicídio coletivo e gerou intensa reação nas redes sociais, durante todo o mês de Outubro. Na semana de 03 de novembro de 2012, o Tribunal Regional Federal da Terceira Região suspendeu a reintegração de posse da fazenda determinada por liminar favorável aos fazendeiros.

Nesta carta e na posição dos líderes indígenas, pode-se observar a consciência avassaladora dos indígenas sobre a sua própria realidade. Neste contexto atual, o objetivo deste artigo é mostrar uma reflexão sobre a situação indígena brasileira e a relação desta situação com as obras de Zygmunt Bauman e Milton Santos.

3.  Os Intelectuais e os Não-Intelectuais na Sociedade Contemporânea
Segundo o Dicionário Silveira Bueno, a palavra “intelectual” é um adjetivo que se refere ao intelecto, que tem inteligência culta: as classes intelectuais; que tem dotes de inteligência; literário; científico; que diz respeito ao entendimento; pessoa dada a estudos literários ou científicos. E a palavra “leigo”, também é um adjetivo, mas significa alguém estranho a um assunto.
A definição acima, é uma entre tantas definições que o termo “intelectual” admite.  Pode-se observar que as definições do conceito de “intelectual” são várias e diversificadas.   Isto porque quem tenta definir o conceito do que é ser um “intelectual”, o faz baseado na sua realidade, e não deixa de ser uma auto-definição.
Quando Paul Radin (Bauman, 2010), menciona a existência de pessoas caracterizadas como sacerdotes-pensadores e outras como leigos, sendo o segundo fundamentalmente identificado com a “ação” e o primeiro com a “reflexão”; um interessado na “análise dos fenômenos religiosos”, e o outro em seus “efeitos”[6], o autor está definindo que há na sociedade dois tipos de personalidades humanas, sendo uma a que se preocupa com a reflexão, o pensar sobre, a análise dos acontecimentos, e a outra com o fazer, com a operação, com as ações puramente práticas sem considerar a reflexão sobre este fazer.
No começo, há uma oposição entre a grande maioria das pessoas comuns – preocupadas com seus assuntos cotidianos de sobrevivência, a “ação”, no sentido da reprodução rotineira de suas condições de existência – e um pequeno grupo dos que só podem refletir sobre a “ação”. É importante ressaltar que o grupo dos “intelectuais”, também chamados neste texto de “pensadores”, não existe sem o grupo dos “leigos”. O homem primitivo tem medo dos fatos que desconhece, das incertezas da luta pela vida[7]. A incerteza sempre foi uma fonte suprema de medo. O comportamento aleatório de fatores cruciais de sucesso ou fracasso pela luta pela vida, a imprevisibilidade obstinada do resultado, a falta de controle sobre tantas incógnitas na equação da vida, isso sempre gerou desconforto espiritual e fez os sofredores ansiarem pela segurança que somente o controle prático – ou a consciência intelectual – das probabilidades pode dar. Este anseio tem sido o fio da meada primordial com que mágicos, sacerdotes e especialistas científicos, profetas ou profissionais da política estão às voltas (Bauman, 2010, p. 25-26).
Na verdade, isto quer dizer que os “leigos” precisam dos “pensadores” para sobreviver porque acreditam que os “pensadores” podem trazer a solução para os problemas do cotidiano, seus males e dúvidas da vida.
Então, quanto mais os “leigos” continuarem na condição de “leigos”, mais os “pensadores” dominam o poder, o conhecimento sobre as coisas da vida e, consequentemente, dominam a vida e tudo o que cerca o grupo dos “leigos”. Tem-se dessa forma, de um lado, o grupo dominante – os “pensadores” e de outro lado, o grupo dos dominados – os “leigos”. E por isso, novas incertezas geradoras de medo são introduzidas no mundo da vida do “leigo” para que este continue sempre assim, sendo dominado pelo grupo dos dominantes.
A diferença entre os “pensadores” e os “leigos”, entre estar interessado em ideias e estar interessado em seus efeitos, leva a muitas consequências, tanto políticas, culturais quanto sociais. Esta diferença produz uma assimetria aguda no desdobramento do poder social. Isto é, não só promove uma nítida polarização de status, influência e acesso ao excedente social produzido como também (e talvez mais importante) baseia uma relação de dependência na oposição de temperamento. Os “leigos” tornam-se dependentes dos “pensadores”, a pessoa comum não pode conduzir os seus assuntos cotidianos sem pedir e receber assistência dos “pensadores”. Na sociedade, os “leigos” passam a serem vistos como seres carentes, incompletos, e até imperfeitos. Desta forma, os “leigos” são vistos como pessoas que precisam da presença constante e a intervenção dos “pensadores” para sobreviver. O conhecido psiquiatra norte-americano Kurt Goldstein, em (Bauman, 2010, p. 32) afirma que:
“Só se podem distinguir, em todas as sociedades primitivas, dois tipos de pessoas, os que vivem estritamente de acordo com as regras da sociedade, que Radin chama de não pensadores, e os que pensam, os pensadores”.

O número de pessoas no grupo dos “pensadores” pode ser pequeno, mas eles desempenham um grande papel:  são pessoas que formulam os conceitos e os organizam em sistemas, os quais são adotados – em geral sem crítica – pelos “não pensadores”[8].
Um aspecto importante a considerar sobre os “pensadores”  é que a intensidade ou o alvo de sua dominação depende do quanto as incertezas ou privações causadas pela ausência de conhecimento dos “leigos”, são presentes na vida destes. Isto é, quanto mais as pessoas tiverem ausência de conhecimento e saber sobre as coisas, mais os “pensadores” terão domínio de causa e poder para dominação.
E é nesse contexto, que este artigo traz para reflexão, a situação atual do índio brasileiro, raça humana que está sendo dizimada pelo homem branco, desde o descobrimento do Brasil até os dias atuais. Os anos e décadas passam, e os mais fortes continuam a explorar os mais fracos.
4. A Situação Indígena: um pouco de história
Historiadores[9] afirmam que antes da chegada de Cristóvão Colombo, em 12 de outubro de 1492, havia na América, aproximadamente 100 milhões de índios em todo o continente. Em território brasileiro, havia 5 milhões de nativos que viviam divididos em tribos de acordo com o tronco linguístico ao qual pertenciam: tupis guaranis na região do litoral, tapuias na região do planalto central, e caraíbas na Amazônia.
Quando os europeus chegaram à terra que viria ser o Brasil, encontraram uma população ameríndia bastante homogênea em termos culturais e linguísticos, distribuída ao longo da costa e na bacia dos rios Paraná-Paraguai. Pode-se distinguir dois grandes blocos sub-divididos em: tupis-guaranis e os tapuias (Fausto, 2001, p. 15).
A chegada dos portugueses representou para os índios uma verdadeira catástrofe. Isso mesmo, uma catástrofe. Os brancos eram ao mesmo tempo, temidos, respeitados e odiados, como homens dotados de poderes especiais, assim como xamãs, que andavam pela terra, de aldeia em aldeia, curando, profetizando e falando de uma terra em abundância. Por outro lado, por não existir uma nação indígena e sim grupos dispersos muitas vezes em conflito, foi possível aos portugueses encontrar aliados indígenas na luta contra os grupos que lhes resistiam.
É importante salientar que o povo indígena resistiu e não se deixou escravizar assim como o povo negro. Uma forma excepcional de resistência consistiu no isolamento, alcançado através de contínuos deslocamentos para regiões cada vez mais pobres. Em limites muito estreitos, esse recurso permitiu a preservação de uma herança biológica, social e cultural. No entanto, ao mesmos tempo em que preservam a sua cultura, os índios vivem como refugiados em suas próprias terras.
Os índios que se submeteram ou foram submetidos sofreram violência cultural, as epidemias e mortes. Do contato com o europeu resultou numa população mestiça que mostra até hoje sua presença silenciosa na formação da sociedade brasileira.
Observa-se, que a palavra catástrofe foi muito bem colocada pelo autor Fausto (2001), para designar o destino da população ameríndia. Milhões de índios viviam no território brasileiro na época da conquista das terras, e hoje, calcula-se que apenas 400 mil índios ocupam as terras brasileiras, principalmente, em reservas indígenas demarcadas e protegidas pelo Governo Federal. São cerca de duzentas etnias indígenas e cento e setenta idiomas, porém a grande maioria desse povo já não vive mais como antes da chegada dos portugueses. O contato com o homem branco fez com que muitas tribos perdessem a sua identidade cultural. O primeiro contato entre os índios com homens brancos foi no dia 22 de abril de 1500, quando o Brasil foi oficialmente descoberto por Pedro Álvares Cabral.
As duas culturas eram muito diferentes e pertenciam a mundos completamente distintos. O que sabemos sobre os índios que viviam naquela época deve-se à carta de Pero Vaz de Caminha, que era escrivão da expedição de Pedro Álvares Cabral, e também devido aos documentos deixados pelos padres jesuítas.
Os portugueses achavam-se superiores aos indígenas, e portanto, pensavam que precisavam dominá-los e colocá-los aos seus serviços. O europeu considerava a cultura indígena como sendo uma cultura inferior, e com esta convicção, acreditavam que a sua função era convertê-los ao cristianismo, e fazê-los seguirem a cultura europeia. Foi assim que os índios foram perdendo a sua identidade.
Os indígenas que habitavam o Brasil, nos anos entre 1492 e 1500, viviam da caça, pesca e da agricultura de milho, amendoim, feijão, abóbora, batata-doce, e principalmente da mandioca. Esta agricultura era praticada de forma bem rudimentar. Os índios domesticavam  alguns animais  e as tribos possuíam uma relação baseada em regras sociais, políticas e religiosas, onde o contato com outras tribos acontecia em momentos de guerras, casamentos, cerimônias de enterro, e também, no momento de estabelecer alianças contra um inimigo comum. Os índios faziam objetos utilizando a matéria-prima extraída da natureza, e esta extração era apenas o necessário para a sua sobrevivência.
Entre os indígenas, não há classes sociais como há entre os povos brancos. Nas tribos indígenas, todos têm os mesmos direitos e recebem o mesmo tratamento. A terra, por exemplo, pertence a todos, e quando um índio caça, costuma dividir com os habitantes da sua tribo. Apenas os instrumentos de trabalho, como machados, arcos e flechas são de propriedade individual. O trabalho na tribo é realizado por todos, porém possui uma divisão por sexo e idade. Os homens ficam com o trabalho mais pesado, como abrir caminhos em matas, a caça e a pesca, e as mulheres e crianças fazem o trabalho mais leve, como a comida, o artesanato, o cuidado com os animais, e as mulheres o cuidado com as crianças.
4.1 A Situação Indígena: do povo Guarani-Kaiowá
Hoje, passado mais de trinta dias após as manifestações nas redes sociais, a situação dos índios Guarani-Kaiowás ainda é noticia na imprensa, como mostrado a seguir:

 

No dia 04/12/2012, um manifesto que pede demarcação e homologação das terras indígenas, com vinte mil assinaturas, é entregue aos três poderes da República. O manifesto subscreve outro manifesto intitulado Em Defesa da Causa Indígena, que desde junho deste ano circula o mundo. Os idealizadores da campanha, a Associação dos Juízes pela Democracia (AJD) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entregaram, ao lado de lideranças indígenas de todo país, o documento e as assinaturas para representantes dos três poderes nacionais – Executivo, Legislativo e Judiciário.


Segundo a desembargadora Kenarik Boujikian, representando a AJD,
“Essa é uma amostra de que o povo brasileiro quer que a Constituição seja cumprida. Em 1988 ficou definido que o governo federal teria cinco anos para demarcar todas as terras indígenas, o que não ocorreu em 1993, e passados quase 20 anos depois disso, apenas 1/3 das terras estão regularizadas. (...) O Judiciário tem uma dívida com a Constituição e os povos indígenas. Os processos envolvendo a regularização das áreas não podem ficar parados durante anos, décadas”.
No dia 06/12/2012, encerrou o prazo dado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para que as famílias de não índios desocupem por livre, espontânea vontade e pacificamente a terra indígena Marãiwatsédé, localizada entre os municípios de São Félix do Araguaia e Alto da Boa Vista, norte do Mato Grosso. As famílias de não índios foram notificadas entre os dias 07 e 17/11/2012, e desde então, estão protestando na BR-158. As terras pertencem aos índios, foi homologada por decreto presidencial em 1998 e reconhecida por sucessivas decisões judiciais, o que, conforme o governo, “legitima o direito constitucional do povo indígena de voltar em seu local originário, com a garantia do usufruto e da posse permanente de sua terra”. A decisão judicial da semana, com julgamento de mérito, atende a uma ação movida pelo Ministério Público Federal em 1995[10].

Segundo Ana Spoladore[11], a comunidade Guarani-Kaiowá não enfrentava mais o risco de um despejo das suas terras, devido ao sucesso do recurso interposto pelo Ministério Público Federal, no Mato Grosso do Sul (MPF/MS) e pela Advocacia-Geral da União (AGU), na figura do Procurador Federal Frederico Aluisio C. Soares[12]. Entretanto, a comunidade indígena ainda está submetida a uma preocupante realidade. Precisam esconder-se em lugares distantes, com acesso somente pelo rio, para não sofrer mais violência dos homens brancos. A água do rio foi contaminada e mulheres índias foram estupradas. Dessa maneira, pode-se dizer que os índios estão vivendo como refugiados dentro das suas próprias terras.

 A advogada de um grupo de fazendeiros argumentou: “Todo o problema da violência está na ocupação das terras por parte dos indígenas, se não houvesse as ocupações, não haveria violência”.

O problema é que as terras precisam ser demarcadas pelo Governo brasileiro, como previsto na Constituição Federal de 1988, para que fique bem definido até onde vão as terras indígenas e onde começam as terras do homem branco. Nesta situação, a responsabilidade da demarcação das terras é, pura e simplesmente, do Estado brasileiro.

Uma frase de Bertolt Brecht[13] ilustra muito bem a história da posse pelas terras:

“Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem”.

Finalmente, para concluir este texto, a última notícia que apresenta-se na imprensa no dia 11/12/2012, publicada no Jornal O Estadão[14], é que a desocupação de terra indígena gerou mais um conflito no Mato Grosso do Sul (MT): “Hoje, no primeiro dia da reintegração de posse da reserva Marãiwatsédé teve confronto entre policiais e produtores rurais”. O confronto ocorreu por causa da retirada dos ocupantes não índios da reserva, localizada a 1.064 km de Cuiabá-MT, reconhecida pela Justiça brasileira, como de propriedade dos índios.

5. Considerações Finais

É impressionante como o homem branco conseguiu, em nome do progresso, quase que exterminar uma etnia, uma ração humana, que são os povos indígenas. Na minha opinião, se os processos públicos continuarem nesse mesmo caminho, infelizmente, a raça humana indígena será extinta do território brasileiro.

Observa-se que, desde a época do descobrimento do Brasil, no período colonial, a violência foi marca forte no relacionamento do Estado Brasileiro com os povos indígenas. Desde a criação Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1910 e as migrações forçadas promovidas contra os indígenas no Mato Grosso do Sul (MS), a partir da década de 1930, com o objetivo de incentivar a colonização do Centro-Oeste brasileiro, como mostrado no filme Xingu, onde muitos índios foram obrigados a migrarem de um lugar para outro com a promessa de terem as suas próprias terras. Os irmãos Villas-Boas foram protagonistas desta migração, levando centenas de índios para o chamado Parque Nacional do Xingu.  

A violência marcou a venda ilegal das terras tradicionais dos Guarani-Kaiowá para homens brancos. E, percebe-se que aqui está o maior erro cometido pelo Estado brasileiro. Por que vender as terras dos índios para os homens brancos ? Quais os interesses do Estado brasileiro na venda destas terras ? Os homens brancos podem pagar Imposto Territorial Rural (ITR) ? Os índios não pagam impostos ? A violência continua quando Estado brasileiro, continua com a demora na demarcação das terras. Enquanto o Estado brasileiro for omisso mediante estas questões, infelizmente, as barbáries no interior do Mato Grosso (MT) e de outros estados, continuarão a assombrar os índios e seus descendentes. Os Guarani-Kaiowás sempre foram e ainda são invisíveis para o Estado Brasileiro. São eles, as verdadeiras vítimas da “impiedosa marcha do progresso”, citada por Victor Hugo[15].

Nesse momento, após tantas informações sobre esta situação, retomo o questionamento feito por Bauman (2010): “Qual o papel dos “intelectuais” no desenvolvimento cultural de seu tempo ?” Esta pergunta intriga muitas pessoas e Bauman (2000) afirma que precisamos de uma nova política, de uma nova política para o nosso tempo, o aqui e agora:
“A arte da política, se for democrática, é a arte de desmontar os limites à liberdade dos cidadãos; mas também, a arte da autolimitação: a de libertar os indivíduos para capacitá-los a traçar, individual e coletivamente, seus próprios limites individuais e coletivos. Esta segunda característica foi praticamente perdida. Todos os limites estão fora dos limites” Bauman (2000, p. 12).

Na Modernidade, o “intelectual” tinha a tarefa de formar os homens “leigos”. A sua função de “pensador” era legitimada pelo conhecimento superior sobre as coisas do mundo e decisiva para o aperfeiçoamento da ordem social. Na Pós-Modernidade, o “intelectual” é caracterizado pelo trabalho de “intérprete”, aquele que procura facilitar a comunicação entre indivíduos, atuando como uma espécie de “negociador” em tempos de globalização e de afirmação de diversidades (Bauman, 2010).

Baseado na ideia de Bauman (2000), não estaríamos nós brasileiros, precisando de um novos “intérpretes” para os novos tempos em que estamos vivendo ? Um intérprete que consiga compreender a pós-modernidade e pensar sobre antigos problemas ?

Quando fala-se em antigos problemas, aqui cito todos os problemas gerados também, pela Globalização, tão debatida pelo geógrafo brasileiro (in memorian) Milton Santos. Pode-se observar que “a marcha para o oeste”, “a corrida para a globalização” como sendo ingredientes importantes para o progresso das nações, mas então o que este progresso trouxe para os povos, senão, fome, desemprego, desalento, falta de saúde, educação, entre tantas outras mazelas ?

Não seria, sempre em nome do progresso, em nome de desbravar terras virgens, como o que foi feito por Cristóvão Colombo; não seria como a colonização portuguesa no Brasil, no período colonial; não seria a marcha para o Oeste, na era Getúlio Vargas; não seria a tal Globalização nos dias de hoje, tudo fruto de interesses financeiros e políticos de poucos “pensadores” em detrimento dos interesses de muitos “leigos” ?

Pois, a na Globalização prega-se a privatização e extinção dos serviços estatais; fala-se em privatização da água potável em Kotiabamba, na Bolívia, sendo que a água é um patrimônio da humanidade; tem-se idiomas que desaparecem com a chegada dos brancos e os nativos são extintos.

Em 2001, cidadãos argentinos da classe média, promovem o movimento que ficou conhecido como Panelaço porque sofreram a dolarização da economia, e com isso tornaram-se os novos pobres do país de um dia para outro.

No Brasil, a privatização da Vale do Rio Doce, a ilusão da moeda forte e consumo fácil e a construção da hidrelétrica de Belo Monte[16] que promete gerar energia para sessenta milhões de pessoas, mas por outro lado, está localizada no coração da Floresta Amazônica. Dentre os problemas apontados pelos ambientalistas[17] está a inundação de uma grande área na Amazônia equivalente a um terço da cidade de São Paulo (SP) e não tem como não causar problemas ambientais.
A nova divisão internacional do trabalho, distribuindo migalhas mundo afora, leva o desemprego aos Estados Unidos (EUA), sendo que o desemprego é uma condição para a globalização e a pobreza é tratada com naturalidade.
Estamos vivendo uma situação onde temos um mundo que se divide em dois grupos: “os que não comem e os que não dormem com receio da revolta dos que não comem” [18].

Por isso, é muito importante pararmos e pensarmos, se é esse mesmo o mundo em que queremos viver e deixar para os nossos filhos, netos, e tataranetos.

Para a finalização deste texto, foram consultados diversos textos, de vários autores relacionados nas referências bibliográficas, nos links das notas de rodapé e na página do grupo da disciplina, na rede social Facebook: https://www.facebook.com/groups/408055995893689/
Referências

Bauman, Z. (1999) Globalização: As consequências humanas. Tradução Macus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar.

_________. (2010) Legisladores e Intérpretes. Tradução Renato Aguiar. – Rio de Janeiro: Zahar.
_________. (2000) Em Busca da Política. Tradução Marcus Penchel. – Rio de Janeiro: Zahar.

_________. (2011a) Fronteiras do Pensamento. Entrevista com o filósofo polonês Zygmunt Bauman para o Fronteiras do Pensamento, apresentada na ocasião do encontro com o pensador francês Edgar Morin, em 08/08/2011, Porto Alegre-RS, com acesso em 18 jul 2012.

Fausto, Boris. (2001) História Concisa do Brasil. São Paulo: EDUSP. Imprensa Oficial do Estado. 2001.

Santos, Milton. (2011) Programa: É tudo verdade. Canal Brasil. Entrevista com o geógrofo e livre pensador brasileiro Milton Santos, apresentada pelo canal de televisão Canal Brasil, disponível no endereço eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=K6EIIQNsoJU, com acesso em 28 nov 2012.

__________. (2011) Documentário do cineasta brasileiro Sílvio Tendler. Globalização Milton Santos – O Mundo Global visto do Lado de Cá. Entrevista com o geógrofo e livre pensador brasileiro Milton Santos, apresentada pelo canal de televisão Canal Brasil, disponível no endereço eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=-UUB5DW_mnM, com acesso em 28 nov 2012.





[1] Sinopse e dados técnicos disponíveis em http://www.xinguofilme.com.br/, com acesso em 01 dez 2012.

[2] Jornal da Tarde - Nosso Tempo, Volume I, página 333. Editora Klick (1995) - "Os irmãos Villas Boas redescobrem o país"

[3] Jornal Zero Hora. (2012) Caderno Cultura. Texto escrito por Maria Cristina dos Santos, professora do Programa de Pós-Graduação em História da PUC-RS, com o título: “Cinco  séculos de confronto: a palavra como arco e flecha”. Pág. 03 de 03/11/2012.
[4] Ibid., p. 03.
[5] Ibid., p. 03.
[6] Paul Radin, Primitive Religion, Its Nature and Origin, Londres, Hamilton, 1938, p.14 apud Bauman (2010).

[7] Ibid., p.23.
[8] Ibid., p.18.
[9]  Documentário do professor de história César Motta (2012), disponível no endereço eletrônico: http://www.youtube.com/watch?v=S82jXhqCa54, com acesso em 06 dez 2012.

[10]  Notícia disponível no endereço eletrônico: http://www.xingu-otomo.net.br/area-no-mato-grosso-sera-devolvida-hoje-a-indios-xavantes/, com acesso em 11 dez 2012.
[12]  Justiça Federal de Navirai-MS, Decisão em sede de Agravo de Instrumento que revoga a liminar de reintegração de posse no processo nº 0000032-87.2012.4.03.6006.
[13] Frase disponível no endereço eletrônico: http://pensador.uol.com.br/autor/bertolt_brecht/, com acesso em 11 dez 2012.
[14]Notícia veiculada no Jornal O Estadão disponível no endereço eletrônico:  http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,desocupacao-de-terra-indigena-gera-conflito-em-mato-grosso-,971963,0.htm, com acesso em 11 dez 2012.

[15]  Notícia disponível no endereço eletrônico http://racismoambiental.net.br/2012/12/relato-da-viagem-as-comunidades-guarani-kaiowa/#.UL6zGAV6zvO.twitter, com acesso em 11 dez 2012.
[16]  Notícia disponível no endereço http://super.abril.com.br/ecologia/quais-sao-vantagens-desvantagens-belo-monte-667389.shtml , com acesso em 13 dez 2012.
[17]  Notícia disponível no endereço http://movimentogotadagua.com.br, com acesso em 13 dez 2012.
[18]  Josué de Castro, 1961, em Geopolítica da fome.